CANTO DOS EXILADOS

Czapski


A saga de uma família polonesa que fugiu da guerra
(Fonte: Problemas brasileiros n 348 nov/dez 2001)
A história da família polonesa Czapski, que se instalou no Brasil em 1941, fugindo da guerra na Europa, ilustra outra vertente da imigração – a resultante de circunstâncias políticas ou perseguições religiosas ou raciais. Foi contada no opúsculo Nosso Caminho de Obra para o Brasil, escrito em 1982 por Ilza Czapska, mulher do técnico agrícola Fryderyk Czapski, de quem falamos anteriormente. "Obra" era o nome da fazenda que possuíam na Polônia. A família, abastada e pacífica, vivia como tantas outras havia várias gerações no mesmo lugar, e nunca poderia imaginar o que o destino lhe reservava.
Ao término de sua missão na colônia polonesa, Fryderyk já se encontrava a bordo do navio em que regressaria à Europa quando a viagem foi cancelada – a Polônia fora invadida por Hitler e a guerra começara. Do outro lado do Atlântico estava sua família inteira, a esposa, Ilza, e os três filhos, Juljan, de 14 anos, Genia, de 13, e o pequeno Janek, de 3. Como veraneavam em outra localidade, tiveram grandes dificuldades para voltar à fazenda de Obra, atravessando um país que naqueles primeiros dias de setembro de 1939 já sofria com bombardeios e violência de toda espécie. Uma população aterrada, disputando escassos víveres, dispersão de famílias, boatos desencontrados, trens abarrotados com fugitivos – sobre os quais as tropas alemãs disparavam com metralhadoras. Em Obra, que já fora ocupada pelos alemães, souberam que Fryderyk havia sido procurado, para ser executado.
Tiveram de se incorporar a grupos de refugiados que eram jogados de um ponto para outro, sem rumo, enfrentando todo tipo de perigos – em uma ocasião, recolhidos a um campo com outras famílias, escaparam da morte quando os velhos soldados alemães que os guardavam se recusaram a obedecer a ordem de executá-los, vinda da administração civil alemã.
Transferências súbitas e inexplicadas, longuíssimas viagens de trem para destino ignorado, fome, frio, o confisco de todos os bens, inclusive das contas bancárias, a angústia diante da separação forçada de Fryderyk e de outros membros da família, a incerteza do destino final – tudo isso foi enfrentado por eles durante dois anos. Nesse ínterim Fryderyk voltara à Europa, mas, como não podia entrar na Polônia, conseguira incorporar-se ao exército francês, na qualidade de oficial. E tentava desesperadamente resgatar a família, pois conseguira um visto de entrada no Brasil para todos. Após uma tormentosa viagem via Alemanha e Hungria, os Czapski puderam se reunir em Paris – por muito pouco tempo: os alemães estavam para invadir a cidade. Ilza e as crianças tiveram de fugir apressadamente, enquanto Fryderyk permanecia em Vichy, com a sua guarnição. Ilza vagou durante meses na região fronteiriça com a Espanha, tentando toda sorte de estratagemas para conseguir reunir simultaneamente os três vistos necessários para a família – o francês, de saída, e os de trânsito da Espanha e de Portugal. Esperava reunir-se ao marido em Lisboa, onde todos tomariam um navio para o Rio de Janeiro.
Esse projeto nunca se realizou. Colhidos nas formalidades burocráticas, na situação política desses países, somente em janeiro de 1941 Ilza e os filhos conseguiriam embarcar no navio Alsina, não em Portugal como pretendiam, mas no porto de Marselha.
Em três semanas, pensavam, estariam no Brasil. Outro engano. Na verdade, devido à falta absoluta de segurança para a travessia do Atlântico, o Alsina, lotado com milhares de refugiados de várias nacionalidades e classes sociais, foi obrigado a se transformar durante os seis meses seguintes em um verdadeiro navio fantasma que vagava pelas costas africanas e ilhas adjacentes, aportando de vez em quando somente para abastecimento.
Os passageiros suportavam mal o calor intenso, as doenças, o tédio, a angústia de se saberem sem rumo e sem terem país que os acolhesse. Apesar disso, procuravam manter o moral e chegavam até a promover festinhas e espetáculos. Um brilhante ator polonês contribuía para distraí-los – o emigrante Zbigniew Ziembinski.
Somente no início de junho uma nota foi afixada no jornal de bordo: o Alsina retornaria a Casablanca, com seus passageiros. A notícia, que parecia boa, logo se mostrou péssima – todos seriam internados temporariamente em um campo da Legião Estrangeira... A família Czapski, porém, conseguiu licença para ficar em Casablanca mais uma semana. Depois de várias peripécias, chegaram à Espanha e finalmente embarcaram em Cádiz, mesmo com seu visto para o Brasil expirado, com destino ao Rio de Janeiro – onde desembarcaram em 10 de julho de 1941. Um mês depois Fryderyk também se reunia a eles – iniciavam assim uma nova vida, num cenário exótico.
Sessenta anos mais tarde, o filho mais velho, o médico Juljan Czapski, em sua elegante clínica paulistana no Jardim Europa, relembra como se sentia atordoado nos primeiros tempos de Brasil. Rapaz de 16 anos, vestido com uma calça comum e uma camisa esporte, quis tomar um ônibus, no Rio de Janeiro, e não conseguia compreender por que tanto o motorista como os passageiros não queriam deixá-lo entrar. Até que apareceu alguém falando francês e explicou-lhe que era proibido tomar um ônibus sem gravata. Pequenas histórias lhe ocorrem, de um Brasil certamente muito diferente do atual: "Havia bondes de primeira e de segunda classe. Os que estavam descalços só podiam andar de segunda. Na primeira, só se tivessem ao menos um dos pés calçado. Nas famílias pobres era comum dois irmãos partilharem um único par de sapatos para viajarem de primeira".
Passada a euforia de se sentirem salvos, os Czapski enfrentaram uma dura realidade – sua situação social mudara completamente. De abastados "senhores" passaram a trabalhadores que tinham de disputar qualquer emprego no mercado de trabalho, com o agravante de não terem nenhum conhecimento da língua e dos costumes locais. O pai, certo de que como técnico agropecuário encontraria emprego num país tão necessitado de desenvolvimento, logo se desiludiu. Depois de andar de uma repartição para outra no Rio de Janeiro, com valiosas mas inúteis cartas de recomendação, teve de ir para São Paulo com a família, alojando-se todos num único quarto, no porão de uma pensão. Não conheciam ninguém. Com muito custo arranjaram um emprego temporário de agricultor para Juljan, no Paraná, mas logo foi possível para o rapaz voltar a São Paulo e preparar-se, estudando à noite, para o vestibular de medicina. A filha Genia também encontraria lugar em um sítio próximo ao Rio.
Esfalfando-se sob o sol do meio-dia para vender produtos químicos ou executar outras pequenas tarefas, Fryderyk, que nunca andara a pé, foi conseguindo aos poucos, com a ajuda de Ilza, mudar a situação. Quando puderam se instalar numa velha casa, foi um progresso enorme. No final da guerra, os Czapski sofreram novo golpe: nunca mais poderiam voltar à sua fazenda na Polônia, que caíra sob o jugo comunista. Mas em 1945 seria possível a eles recomeçar a vida com uma situação estável, administrando a Fazenda Lagoa Alta, perto de Araras (SP). Ilza descreve com detalhes esse período de cerca de cinco anos de "aprendizado das condições da agricultura no interior do Brasil". Exerceram as mesmas funções em outras fazendas e mudaram muitas vezes de residência, instalando-se no interior de São Paulo e do Paraná.
A história dos Czapski, como a de tantos outros imigrantes, teve um final feliz – todos prosperaram, se mantiveram unidos, casaram, tiveram filhos e netos e se transformaram em uma grande família brasileira, completamente arraigada no solo que a acolheu.