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TEXTOS

Um jogo de espelhos: Stefan Zweig e Maria Antonieta


Alberto Dines

(Fragmentos de uma palestra, Casa do Saber, São Paulo)

“...Para atingir a realeza, a Revolução devia atacar a rainha e nessa rainha, a mulher. A verdade e a política raramente habitam o mesmo teto, e de onde se pretende desenhar uma figura no intuito de agradar à multidão, pouca veracidade se pode esperar: são artistas subservientes que se curvam à opinião pública...”

“...A História não necessita de um personagem central cheio de heroísmo para construir um drama emocionante. O trágico não resulta tão somente dos traços exagerados de um ser humano, mas ainda e sempre, da desproporção entre o ser humano e o [seu] destino...”

“...O trágico também existe quando uma natureza média ou fraca é ligada a formidável destino...”

“…A tendência do ser médio, feliz ou infeliz, é de não sentir a necessidade de se medir, não ter curiosidade de se fazer perguntas...”

“...O destino, uma vez ou outra, escolhe um herói insignificante para mostrar que, de matéria frágil, sabe tirar o mais intenso pathos, de uma alma fraca e indolente, a mais alta tragédia....”

Stefan Zweig Maria Antonieta, Introdução


Maria Antonieta foi reabilitada duas vezes: a primeira, depois de 1815 até o início do século seguinte. Começou a partir do momento em que um Bourbon voltou ao trono francês e iniciou-se uma intensa cruzada intelectual para limpar a imagem da rainha deformada pelos pasquins e panfletos antes, durante e depois da Revolução. Foi uma reabilitação conduzida por historiadores da linha conservadora, sobretudo monarquistas.

A segunda reabilitação começou nos anos 30 do século XX e foi empreendida graças ao suporte da psicologia e da psicanálise. O escritor vienense Stefan Zweig pode ser considerado como o inspirador desta segunda reabilitação.

Por que então Sofia Coppola utilizou o livro de Antonia Fraser e não o de Zweig? “Sofia Coppola se recusou a ler a famosa biografia escrita por Stefan Zweig por considerá-la rigorosa demais. A diretora preferiu se basear no livro de Antonia Fraser, que faz da rainha um personagem mais humano".

Cabe perguntar: quem foi mais humano e mais verdadeiro – Zweig ou Fraser? E por que razão Sofia Coppola disse que Zweig foi rigoroso com o personagem? Zweig precisou construir um contraste entre a rainha doidivanas e a mulher que seria transformada pelo confronto com o destino.

As “escolhas de Sofia”: a cineasta deixou de lado o que o espectador já conhecia (a Revolução, o julgamento, a guilhotina) e se concentrou naquilo que o espectador não conhecia ou conhecia pouco – a dissipação de Versailles. E para comprovar que Versalhes pode acontecer em qualquer parte do mundo e em qualquer época, utilizou a trilha sonora moderna.

Sofia Coppola também não se deixou seduzir pela biografia de Evelyn Lever publicada em 2000. Lever ficou muito próxima de Zweig, inclusive na engenharia e organização dos capítulos. Para temperar a sua biografia inseriu depoimentos de psicólogos e psicanalistas. Já Zweig usou os recursos da psicologia dentro da narrativa. Lever e Fraser mencionam Zweig apenas na bibliografia. Não foram elegantes porque ignoraram que suas obras são seqüências da obra de Zweig. A vantagem de Fraser sobre Lever é de ser a mais recente. Virão outras, não existe uma biografia definitiva. Só biógrafos apressados garantem que a sua será a última e definitiva .

Graças à primeira reabilitação de Maria Antonieta no início do XIX apareceu uma farta documentação: só a correspondência do Conde Mercy (personagem no filme) com Maria-Teresa tem dois volumes. Existem inúmeros diários e memórias de personagens importantes ou desimportantes (como o cabelereiro Leonardo), atas do julgamento, pasquins, etc.

A fonte primária de Stefan Zweig foi justamente a correspondência do Conde Florimond Mercy d’Argenteau, diplomata austríaco, conselheiro da imperatriz e uma espécie de tutor de Maria Antonieta. O conde aparece ao longo do filme. Neste aspecto, Sofia não conseguiu ignorar Zweig.

Para Zweig, a biografia de Maria Antonieta, trouxe diversas inovações, uma delas foi a utilização de pesquisadores auxiliares deixando o autor mais livre para o trabalho literário. Três destes auxiliares são conhecidos: Erwin Rieger (amigo e primeiro biógrafo de SZ, trabalhou nos arquivos franceses), os austríacos Fritz Adolf Hünich e Kluber trabalharam nos arquivos de Viena. Mas Zweig, como colecionador de autógrafos e manuscritos, adorava sujar as mãos com a poeira dos velhos documentos.

Como Stefan Zweig chegou a Maria Antonieta? Tudo indica que esta relação começou com A cura pelo espírito, o tríptico sobre Freud, Mesmer e Baker-Eddy (1931). Mesmer foi contemporâneo de Joseph Fouché, o político que atravessou o antigo regime, a Revolução e a era Bonaparte e foi biografado por Zweig ainda em 1929. A seqüência destas três biografias explica muita coisa. Além disso, fazem parte de uma safra que não está amarrada à literatura como Os construtores do mundo, A Luta com o demônio, Três poetas da sua vida, etc.

É curioso o subtítulo original de Maria Antonieta: Bildnis ein Mittleren Charakters – Retrato de uma personalidade média (no sentido de comum, normal, ordinária). Mas em outras línguas (inclusive em português) o subtítulo mudou para “Retrato de uma mulher média”. O substantivo original mostra o forte viés psicológico-psicanalítico desenvolvido a partir de A cura pelo espírito”. Mas a opção pelo substantivo “mulher” deve-se ao seu tino comercial. Vários de seus inesquecíveis personagens ficcionais eram mulheres (Carta de uma desconhecida e 24 horas na vida de uma mulher para citar as mais famosas) mas Maria Antonieta porque não foi inventada, porque existiu realmente e porque foi projetada por ele como a mulher que sabe enfrentar a morte, marcou-o definitivamente como o escritor feminista por excelência.

Curiosamente, as biografias de Fouché e Maria Antonieta são denominadas Bildnis (“bild” é retrato, “bildnis” é perfil, retrato psicológico). Mas a partir de Maria Antonieta, os biografados de Zweig ganham uma nova dimensão, passam a ser vistos por uma outra ótica: são projeções do autor, fazem parte de um JOGO DE ESPELHOS.

Zweig parece repetir a famosa explicação Flaubert “Mme. Bovary, c’ést moi”. Em Erasmo (Triumph und Tragik des Erasmus von Rotterdam, 1934), Castelio contra Calvino (onde ele é Castélio), e em Fernão de Magalhães, O Homem e a sua façanha (1937, Magellan, Der Mann und seine Tat), estes personagens falam por Zweig, tomam posição no seu lugar, já que detestava pronunciar-se politicamente. Até mesmo o inacabado Montaigne (começado no Brasil) pretendia ser uma projeção de Zweig ao descrever o intelectual que se coloca acima das contendas.

Não se enquadram nesta lista o Américo Vespúcio (que não pretende ser uma biografia) e o Balzac (figura que o fascinou ao longo de quase 30 anos), concebida como uma espécie de monumento e, talvez por isso, inacabada.

Praticamente todas estas biografias depois de Maria Antonieta são biografias políticas sem política. Isso se comprova a partir do cenário e das circunstâncias em que Zweig as escreveu. Fouché (que não se enquadra como espelho) serviu para denunciar a falta de escrúpulos dos políticos que serviam a qualquer idéia desde que se mantivessem no poder. A Alemanha e a Áustria daqueles do fim da década de 20 foram férteis em personagens iguais.

E por que Zweig recorreu a Maria Antonieta ?

Primeira razão: a história da rainha contém todas as suas idéias sobre as figuras realmente interessantes. Ele não se fascinava com os heróis virtuosos e os vitoriosos. Preferia os derrotados. E entre esses preferia os dúbios, os imprecisos, os ambíguos. Os anti-heróis que se convertem em sofridos heróis rendem mais em termos, humanos, morais e, sobretudo, dramáticos. Fascinava-se com os “normais” (como Maria Antonieta) que de repente se agigantam. Estes oferecem material literário e psicológico mais rico e polêmico. Gente como a gente que, de repente, diante dos desafios e infortúnios do destino dá um salto, se supera e cresce. A princesa austríaca, criada numa corte mais austera, longe da sua família, língua e ambiente transforma-se forçosamente numa rainha frívola. Este esquema oferece um manancial de conflitos muito rico e, sobretudo, capaz de materializar as teorias de Zweig sobre a natureza humana.

Segunda razão: a Revolução Francesa oferecia-lhe a oportunidade para refletir sobre o momento político internacional, sobre as sedições populares e o ajudava a posicionar-se sutilmente a respeito do bolchevismo. Em 1928, SZ foi à URSS, encantou-se com os frutos da revolução comunista e, ao mesmo tempo, percebeu os perigos e os descaminhos que podem perverter as revoluções sangrentas. A partir da viagem à URSS começa um doloroso e lento afastamento do mestre Romain Rolland, fiel à ‘linha justa’ do Kremlin. Maria Antonieta começou a ser escrita neste período (1931)

Terceira razão: SZ também se classificava como “mediano”, na condição de escritor e de ser humano. Ao contrário de Thomas Mann, que sempre se considerou eleito pelos deuses, Zweig tinha noção das suas fragilidades, apesar do sucesso dos seus livros. O seu sucesso comercial o incomodava. Zweig vivia perseguido por culpas, estava sempre em dívida, dividido por muitas lealdades, fragmentado pelos inúmeros projetos e insatisfeito com os resultados. Neste processo de trituração da auto-estima não foi difícil enxergar-se como “mediano”.

Em quarto lugar: o esfacelamento da Áustria depois de 1919 e o radicalismo político que impedia a sua reconstrução levaram-no a temer pelo futuro. Nunca foi um patriota, tinha horror ao nacionalismo, mas estava preocupado com o país em que nasceu.

A Áustria desnorteada pode ter sido o paradigma para desenhar a tonta Maria Antonieta. Nos Diários há fortes indícios para acreditar nisso. Dos onze cadernos encontrados (que cobrem irregularmente o período 1912-1940) um deles foi começado “depois de anos de interrupção” no dia 22 de Outubro de 1931. Qual a razão para retomá-los? “A premonição de uma época crítica, uma beligerância que deverá ser consignada como a Grande Guerra... Não penso num conflito armado, mas em irrupções internas, sociais, talvez aqui [na Áustria] sob a forma de uma sublevação fascista organizada pela Heimwehr (milícia patriótica anti-bolchevique, de extrema direita).

O pretexto imediato para recomeçar os diários foi um telefonema recebido na tarde daquele dia dando conta da morte do amigo mais velho, Arthur Schnitzler, por quem tinha veneração. Depois de descrever o escritor falecido, anota: “De tarde, continuei a trabalhar em Maria Antonieta.”

Dia seguinte: “desconsolado pela política austríaca. É preciso anular dentro de nós a idéia de nacionalidade... Incessante a pergunta – para onde ir? Descubro neste momento através das avaliações de Mercy as preocupações políticas de 1780. Continuo a M. A.”

E nos 43 dias seguintes ao lado das constantes e lacônicas anotações sobre o andamento da biografia, os diários revelam sua preocupação com o estado do país. Começou a escrever em setembro de 1931, pretende terminar em março de 32. Para isso, calcula, precisará trabalhar oito horas por dia. Era capaz disso. No dia 11/11 anota que será necessário diminuir o aspecto histórico para não perder de vista o personagem.

O dia do seu aniversário, 28/11, quando completa 50 anos, é designado como Dia Negro. Na noite anterior, já tomado pelas preocupações com a idade, registra a disposição de seguir em frente sem a pretensão de ir muito longe. “Importante é escolher o caminho certo.”

Outras duas informações corroboram a hipótese de que a biografia de Maria Antonieta sofreu estímulos de caráter político e nacional. Zweig sempre trabalhou simultaneamente em vários projetos e no período descrito nos diários ele menciona a elaboração de um romance cujo nome não cita [posteriormente identificado como História da moça do correio, adaptado pelo próprio Zweig em colaboração com Berthold Viertel no filme O Ano Roubado e no livro Êxtase da Transformação, ambos póstumos]. No enredo, a vida na Áustria depois da ruína do império. A um amigo, confessa que ainda não possuía a “necessária maturidade artística e humana” para escrever um romance. Na verdade, só conseguiu terminar um Coração Inquieto que levou três anos para completar (1936-39). Maria Antonieta e o romance apesar de descreverem épocas diferentes têm a mesma raiz – a preocupação com a Áustria.

Outro elemento “austríaco” sobre a construção da biografia de Maria Antonietafoi terminada no inverno de 1932, durante uma temporada em Cap d’Antibes ao lado da primeira mulher, Friderike. Junto com o casal, na condição de hóspede, estava o jovem amigo Joseph Roth. Os dois escritores trabalharam intensamente ao longo de dois meses, lado a lado: Zweig mergulhado na M.A. e Roth no romance que o tornaria conhecido, “A Marcha de Radetzky” - um épico sobre a história da dinastia Habsburg. No fundo, trabalhavam o mesmo tema com ferramentas e estilos diferentes. O primeiro capítulo de M.A. é quase todo dedicado à família imperial, os Habsburgo, uma extraordinária história de sobrevivência onde os casamentos desempenharam papel mais importante do que as guerras. No capítulo final, SZ anota que a morte de M.A. não impediu que poucos anos depois, Napoleão fosse buscar como mulher outra arquiduquesa da mesma família dos Habsburg.

Sigmund Freud conhecia Zweig havia algumas décadas. Gostava da sua literatura e das suas biografias. No tríptico onde foi retratado gostou mais do capítulo sobre Mesmer, disse isso ao autor em carta muito rigorosa onde minucia todos os seus erros. Mesmo assim, continuou gostando de Zweig e lendo os seus livros. Quando SZ completou 50 anos, Freud mandou-lhe uma carta muito generosa. E depois de receber M.A. escreveu ao autor uma longa carta que acabou por transformar-se numa espécie de “atestado de qualificação” em matéria psico-histórica.

Muitos intelectuais amigos de Zweig não gostaram da obra. Uns criticaram as intimidades sexuais, o clima de alcova, outros o excesso de “psicologismo”. O livro foi um sucesso instantâneo. Em dois meses vendeu 40 mil exemplares, segundo o próprio SZ (em carta para o tradutor argentino, Alfredo Cahn). No fim de 1932, poucos meses depois de lançado, já tinham sido vendidos os direitos para 14 edições em idiomas diferentes. Em fevereiro de 1933 foi escolhido como o livro do mês pelo Clube do Livro dos EUA. A Metro-Goldwyn-Mayer pagou pelos direitos uma soma que lhe permitiria passar dois anos sem trabalhar (declaração dele mesmo). Com Norma Shearer, Tyrone Power, John Barrymore e Robert Morley foi um autêntico sucesso de bilheteria em 1938. SZ detestou a adaptação. Prometeu a si mesmo que jamais permitiria outra versão cinematográfica de uma obra sua.

Quando Zweig chegou ao Brasil pela primeira vez, em 1936, ele era identificado como o “celebrado autor de Maria Antonieta”. Quando matou-se em 1942, já havia conseguido escrever ao menos um romance, Coração Inquieto que se passa justamente na Áustria. E depois de Maria Antonieta, apareceu outra rainha, também Maria - Maria Stuart - outra figura apagada de repente engrandecida pela tragédia que a levou ao cadafalso.

Stefan Zweig escreveu cerca de 40 biografias, perfis ou ensaios biográficos. Com cada um desses personagens procurou construir uma espécie de arquétipo, modelo. Não conseguiu evitar que cada um deles fosse parte dele mesmo.


Alberto Dines, jornalista, autor da biografia "Morte no Paraíso"