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TEXTOS

Cinema de papel


Sylvio Back

Quem viu (ou ainda verá) Lost Zweig no cinema, em DVD ou na televisão, há de ficar um tanto surpreso com o descompasso entre o que está faiscando na tela/telinha e o que se lê no roteiro. Mas o mesmo vai acontecer com quem operar o inverso: o desenho verbal e imagético do texto que desembocou nas filmagens, aqui reproduzido, às vezes parece que não “combina”, se a palavra couber (e cabe!), com os diálogos, cenas e seqüências do filme.

Isso tem uma razão, eu diria, quase inelutável de ser. A publicação de roteiros é uma prática usual na Europa e nos Estados Unidos. Ao contrário do Brasil, cuja estante nesse particular é rala e rara. Freqüentemente, o chamado screenplay ou scénario (a nomeação de ambos é pertinente porque sempre tivemos grande influência dos cinemas norte-americano e francês), quando vira livro, não sofre qualquer intervenção substancial para deixá-lo próximo ou mesmo íntimo do filme. São peças tais quais foram escritas pelos seu(s) autor(es), sejam obra de roteiristas, sejam invenções do próprio diretor/roteirista para o set de filmagem.

Por outro lado, existem cineastas e roteiristas que, após o filme pronto, e surgindo a possibilidade de editoração, submetem o texto a uma reescritura – de olhos armados no foto¬grama impresso. Como que querendo “desmaterializá-lo” de sua origem e função originais para dotá-lo de um quê de leitura subsidiária ao filme. Assim, a partir desse novo “tratamento”, o roteiro invariavelmente acaba se travestindo numa espécie de arremedo de libreto de ópera. Quer dizer: você pode acompanhar pelo livro o filme cena a cena, diálogo a diálogo – tudo é simétrico e sincronizado, como se fosse uma dublagem. Ou, similar às legendas de filme estrangeiro. A morte anunciada do imaginário e da poesia para ambos os códigos, o cinema e a literatura.

Essa “plástica”, muito corriqueira, embute um preço estético incontornável: o viço primevo do roteiro esmaece, enchendo-se de opacidade, perdendo as surpresas e os voleios da palavra. E aquele guión (como se diz belamente roteiro em castelhano), com pretensões estilísticas, que poderia ser lido como uma quase-novela ou um quase-romance, nessa hora renuncia à sua autonomia textual para virar um acessório de óbvio vezo mercadológico. Como que desnaturando-o de seus propósitos de, digamos, azimute incontornável para diretor, intérpretes e técnicos de um filme.

Importante, no entanto, ressaltar que, mesmo não substituindo o original que normalmente fica inédito, ele será sempre uma inestimável memória da “cozinha” da criação do filme ainda por ser feito, sendo feito. Isso sem falar dos inúmeros roteiros que jamais chegam às telas, que dirá às livrarias e bibliotecas, e cujo destino é a poeira dos tempos.

No meu caso, fico sempre com a primeira hipótese, a do texto virgem, o da concepção literária feita com o objetivo único de ganhar visibilidade através dos seus diálogos, cenários, figurinos, músicas ruídos e silêncios. E é por aí o espírito que rege esta configuração livresca do roteiro de Lost Zweig que está chegando à fruição do leitor/espectador (ou vice-versa). Exatamente para que ambos, se forem a mesma pessoa, possam rastrear a senda das inevitáveis mutações (para o bem e para o mal) que ocorrem com o imaginário literário ao ser transportado para a linguagem cinematográfica. E até a contrapelo, se assim o preferirem.

Já tive publicados uma dezena de argumentos/roteiros, dentre eles, os de Lance Maior, Aleluia, Gretchen, República Guarani, Rádio Auriverde e Cruz e SousaO Poeta do Desterro nessa pegada. O leitor acaba tendo acesso privilegiado e simultâneo a duas obras independentes: a escrita – uma espécie de “filme para ser lido”, e a outra, fílmica – o destino final e fatal do que antes era provisório e apenas uma cesta estética de virtualidades.

E o melhor de tudo: com ambas, o leitor está livre para se divertir, informar-se, refletir, criticar em separado ou no todo, retomando ou indo pela primeira vez ora ao filme, ora ao roteiro. Seria como poder assistir, mentalmente rebobinando, ao processo de gestação de uma borboleta dentro da lagarta: da palavra transmutada em fotograma para o que antes era mero cinema de papel – o roteiro. E vice-versa, indefinidamente!

Toque final: para efeito de melhor fruição, o livro abre invertido, com o roteiro em português, seguido do seu original em inglês. Na verdade, é uma versão quase livre, digamos assim, da sua matriz noutro idioma. Igualmente, como ocorre entre o texto escrito e o fotograma impresso, também aqui ações e diálogos se atravessam, criando uma inesperada e curiosa imbricação que lhes amplia (quero crer!) o prazer da leitura.

Sylvio Back, cineasta e poeta, diretor e roteirista (com Nicholas O’Neill) de Lost Zweig