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Stefan Zweig está vivo – em Salzburg & adjacências


Alberto Dines

Stefan Zweig lebt!(*), Stefan Zweig está vivo. Desde que morreu. Sua “pós-vida” (que os ingleses chamam de after-life), ultrapassa em oito anos as seis décadas que viveu. O epílogo da sua biografia já ultrapassou as dimensões de capítulo e assume-se como um livro à parte, tão rico quanto a tumultuada existência.
A guerra o liquidou em 1942 e a paz de 1945 o ressuscitou nos quatro cantos do mundo. Desde então tornou-se o protagonista de uma sucessão de revivals que envolvem sua ficção, personagens que biografou, bandeiras que defendeu e os insights que registrou nas memórias, ensaios, diários, cartas. Não fazia parte do Orkut ou do Facebook mas a sua imensa rede de amigos e correspondentes o convertem em coadjuvante de inúmeras biografias e memórias.
Um cult alimentado pelos atributos que desenvolveu em vida: idealista, independente, perplexo, criador compulsivo, curioso incontrolável, artesão impaciente.
Este ano, no 90º aniversário do Festival de Salzburg e na vizinha Baviera o suicida retorna com uma tremenda vitalidade e retoma sua imagem de construtor de pontes principalmente a que liga o fin de siècle do XIX e estes nouveaux temps do século XXI.
Nos mais de cem eventos programados para o Festspiel da cidade onde viveu 18 anos e escreveu o grosso da sua obra, três deles levaram a sua assinatura, o quarto lembrou a sua passagem pelo Brasil. E em Munique, não muito longe dali, reapresentava-se em grande estilo a ópera que escreveu para Richard Strauss.
Não se trata de uma sucessão de coincidências, modismo literário ou fenômeno editorial. A criatividade do autor deixou como herança uma enorme quantidade de obras capazes de reproduzirem-se indefinidamente através de adaptações, releituras, paráfrases.

Zweig no país do futuro
Pela ordem de apresentação, o primeiro evento zweiguiano do Festival foi Stefan Zweig no país do futuro apresentação do livro doa mesmo nome lançado no Brasil em co-edição da Casa Stefan Zweig, Biblioteca Nacional e a editora EMC.
Sob o patrocínio da Sociedade de Amigos do Festival de Salzburgo e da Casa Stefan Zweig realizou-se no dia 28/7 no auditório denominado Schüttkasten, com a participação do autor e da tradutora Kristina Michahelles (para ler a íntegra, clique https://casastefanzweig.org/sec_texto_view.php?id=88).
No dia 28/7 estreou no Landestheater a versão teatral de uma das mais conhecidas novelas de Stefan Zweig, Medo (Angst), que já rendeu três versões para o cinema, a mais conhecida, dirigida por Roberto Rosselini e protagonizada por Ingrid Bergman (1954). Junto com Segredo ardente, Carta de uma desconhecida e 24 horas na vida de uma mulher compõem um políptico de novelas femininas que converteram Zweig no autor preferido das mulheres no período entreguerras. Não são açucaradas e românticas histórias de amor, mas convulsões sobre o amor.
A surpreendente adaptação teatral de Angst é do belga Koen Tachelet (Antuérpia, 1964) que se dedica à encenação de obras não-teatrais (Joseph Roth, Houellebecq, John Cassavetes, Krzystof Kieslowski e Arnon Grünberg). A direção é do suíço-israelense, Jossi (Iossi) Wieller (1951, Kreuzlingen) que não escolhe gêneros, vai dos gregos ao kabuki japonês.
Dramaturgo e encenador transformaram a prosa zweiguiana e seu estilo “falado” da narrar histórias (quase sempre no passado), num espetáculo de grande suspense, sobre algo que está acontecendo naquele momento. No elenco: Katja Bürkle, Elsie de Brauw, Stefan Hunstein e André Jung.
Publicada inicialmente em capítulos em 1913 pelo mais importante jornal vienense, Neue Freie Presse, a novela consegue manter 97 anos depois a mesma elétrica tensão criada pelo amor clandestino de uma mulher bem casada, mãe de dois filhos, chantageada por uma criada.
Medo foi incluída na coleção de obras completas da Editora Guanabara (1939-1943) no volume Caleidoscópio, reeditada pela Record em 1999 com o título Medo e outras novelas e mais recentemente, em formato de bolso, pela LP&M (tradução de Lya Luft e Pedro Süssekind).

Viagem para o futuro
No dia seguinte 29/7, no mesmo Landestheater, o celebrado Klaus Maria Brandauer fez a leitura do fragmento da novela Resistência da realidade (Widerstand der Wirklichkeit). Escrita no final da década de 20, publicada numa revista vienense em 1929, não chamou a atenção quando republicada na Suíça (Williams Verlag-Atrium Press, 1976) e Alemanha (S. Fischer Verlag, 1987). Na França (Gasset, 2008), Voyage dans le passé - o título original da novela - foi recebida com entusiasmo, assim como na Inglaterra (Journey into the past. Sairá em novembro nos EUA.
Acusado de comercial, Zweig era extremamente rigoroso com os seus textos, jamais incluiu este fragmento nas suas coletâneas. Àquela altura, a Europa fervia e ele estava absorto pelas biografias e o jogo de espelhos que através delas combinava passado e presente.
Viagem ao passado é a história de um reencontro e um desencontro, narrada no presente com uma agilidade quase cinematográfica, permite a um exímio ator como Brandauer narrá-la como se fosse um filme sem imagens, de sons. Leia um comentário (em alemão) sobre a leitura do fragmento em Salzburg: https://salzburg.com/online/thema/schauspiel/Widerstand-der-Wirklichkeit-Brandauer-las-Zweig.html?article=eGMmOI8Vd2eSXwrZ9wRf6ddVTeRXVE4BDYkhjji&img=&text=&mode=&.

Zweig nas telas do cinema
Entre 1/8 e 13/8, o Stefan Zweig Centre sob a direção de Klemens Renoldner em colaboração com Das Kino, Salzburger Filmkulturzentrum apresentou uma fascinante incursão na história do cinema, mostruário das novelas onde o amor é pesadelo, reunidas sob o título de Stefan Zweig: Die Liebe, Ein Abgrund. (Stefan Zweig: o amor, um abismo).
Seis filmes da sua vasta filmografia: Segredo ardente (em versão de 1988 - a primeira foi de 1928 - com o mesmo Brandauer e Faye Dunaway, direção de Andrew Birkin), Uma partida de xadrez (1960, direção de Gerd Oswald com Curd Jurgens¨), Medo (La paura, 1954. versão italiana de Rosselini com Ingrid Bergman e “LaPeur, versão francesa de 1992, dirigida por Daniel Vigne com Marianne Basler) e a inesquecível Carta de uma desconhecida (1948, de Max Ophuls com Joan Fontaine e Louis Jourdain).
Vintage Zweig, puro Zweig, festival cinematográfico de um escritor que detestou todas as adaptações para a tela, sempre prometia recusar novas ofertas e, no entanto, escrevia como um roteirista.

Metáfora no palco
Munique antecipou-se a Salzburgo e apresentou o Festival de Ópera ao longo do mês de julho. Um dos seus pontos altos foi A mulher silenciosa, Die Schweigsame Frau, ópera-bufa inspirada em Ben Jonson (The Silent Woman) estreada em 1935 em Dresden e convertida num dramático episódio político envolvendo os seus autores: o celebrado compositor Richard Strauss, Presidente do Reichmusikkammer (Comissário de música do governo nazista) e o seu libretista, o escritor judeu Stefan Zweig.
A Gestapo interceptou uma carta de Strauss a Zweig, Goebbels obrigou-o a demitir-se do cargo, caiu no ostracismo e Stefan Zweig carregou na consciência ao longo dos sete anos seguintes a acusação de ter colaborado com o compositor preferido por Hitler.
Fiasco: a ópera ficou em cartaz apenas dois dias e mesmo sem assistir a qualquer ensaio Zweig afirmou categórico para a primeira mulher, Friderike: era longa e pesada (carta de 26/6/1935). Seu senso crítico funcionou novamente: 30 ou 40 minutos a menos de espetáculo não lhe fariam mal algum. Strauss, porém, sempre a considerou a sua melhor produção cômica. O jorro de acordes tipicamente straussiano não consegue produzir uma única ária ou melodia. Mas os finais do 2º e 3º ato são sublimes,
O numeroso elenco (trata-se de uma peça dentro de outra) encarece a produção, as remontagens são raras. Esta da Bayrische Staatsoper é magnificente: o encenador australiano Barrie Kosky (Melbourne, 1967) pretendia um mix de Mel Brooks com os Muppets e o conseguiu, mas o seu objetivo maior era transformar a Mulher Silenciosa numa ópera sobre um personagem masculino que ao longo de três atos é trapaceado pelo sobrinho, uma trupe circense e torturado pelo barulho.
A questão mais palpitante que envolve a história desta obra e até hoje não esclarecida tem a ver com a sua motivação: o que teria levado Zweig a escolher uma comédia burlesca do período elisabetano quando Strauss o convidou a ocupar o lugar de Hugo von Hofmannsthal como seu libretista?
Todas as obras de Zweig, em qualquer gênero, desenrolam-se em dois níveis: o enredo objetivo e a razões subjetivas que o levaram a escrevê-la. Em alguns casos a alusão é mais forte. Na trama de Ben Jonson, a mulher silenciosa, Aminta, é secundária, o verdadeiro protagonista é Sir Morosus, ex-comandante naval inglês, cansado dos estampidos das guerras que combateu.
Qual a metáfora, a mensagem embutida, o sentido oculto desta ópera escrita quase clandestinamente num dos períodos mais atormentados da primeira metade do século XX (1931-1935)? Na última carta que escreveu ao ilustre parceiro a quem tratava como Herr Doktor e datada de dezembro de 1935, Zweig permite-se uma brincadeira e assina-se Morosus. Seria ele o inspirador?
Passava por momento difícil, queria deixar a Áustria conflagrada, a mansão em Salzburg, a mulher autoritária, sua coleção de autógrafos e escapar da política ensurdecedora.
Na última cena, depois de uma sucessão de tumultos Morosus finalmente recosta-se e consegue dizer aliviado: “Ach, ich fühle mich unbeschreiblich wohl. Nur Ruhe ! Nur Ruhe !...Aaah..Aaah...Aah...” (“Sinto-me indescritivelmente bem...Só sossego...Só sossego... Ah-ah-ah...)
Morusus não é Zweig, a falsa Aminta é um engodo, só queria aproveitar-se do velho cansado de guerras. Se olharmos a conjuntura de 1932 (quando Zweig começou a preparar o roteiro) talvez seja possível identificar algum militar alquebrado, ansioso para descansar, mesmo sabendo que o enganam.
Zweig continua suscitando idéias, falta muito para desvendá-lo.

(*) “Stefan Zweig lebt” foi o título do 2º Congresso Internacional dedicado ao escritor em Salzburg, 1998.