Diálogo dos visionários: Ambrósio Brandão e Stefan Zweig

Alberto Dines

 


O Brasil está na ordem do dia. O país do futuro finalmente chegou ao presente, muito embora o futuro de hoje não seja o mesmo futuro de antes. A compulsão do futurismo banalizou o porvir, tornou-o mutante. As profecias já não fascinam. Triviais, converteram-se em modismo, cada dia há novos vaticínios.


O passado, provavelmente, produz mais curiosidade do que as previsões para amanhã. A nostalgia parece mais estimulante do que os sombrios exercícios de futurologia com as inevitáveis catástrofes climáticas.


O país produz encantamentos há 510 anos consecutivos, fascina todos os viajantes e cronistas. Dois destes testemunhos merecem ser pinçados, comparados e juntados numa viagem única. Há neles uma convergência que não deveria ser ignorada, embora um deles seja pós-renascentista e o outro pós-romântico, herdeiro dos traumas das duas guerras mundiais.


Esta viagem começa na realidade na antiga Atenas, mais precisamente no 5º século antes da Era Comum, portanto, há 2.500 anos. Nossa primeira referência chama-se Sócrates, o marco fundador da filosofia ocidental na medida em que tudo o que aconteceu antes dele vai para a pasta dos “pré-socráticos”. E chega até nós através de uma ferramenta extraordinária: os 35 Diálogos escritos pelo discípulo Platão onde dois interlocutores movidos pela mesma curiosidade e igual vontade de buscar a verdade produziram um dos maiores vetores do conhecimento.


Diálogos aparecem aqui não apenas como um estilo narrativo, mas como método de aproximações. Promover o diálogo entre dois autores que não se conheceram porque viveram separados por mais de três séculos não é fantasia ficcional, ao contrário, é um projeto de engenharia documental assentado em diversas pontes.


Uma destas pontes tem um pilar na antiguidade, há 3.300 anos, no tempo em que os hebreus escaparam do Egito. Para vencer as tentações idólatras e convencê-los a manter-se como um povo livre – tarefa complicada mesmo hoje --  o Todo Poderoso ofereceu-lhes a promessa de conduzi-los à Terra Prometida, Canaã, onde mana o leite e o mel (como está no Livro do Êxodo, 33:3).


A busca de réplicas da Terra da Promissão nos traz a esta Olinda e nos oferece como cenário um jogo de espelhos onde dois visionários separados por 323 anos reinventaram o Brasil.


Plutarco com suas Vidas Paralelas teria adorado as simetrias e assimetrias entre estes dois autores. Um chama-se Ambrósio Fernandes Brandão, ao que tudo indica lisboeta, capitão de uma companhia de infantaria, coletor de dízimos, senhor de engenho em Pernambuco e Paraíba, certamente morador em Olinda. O outro, Stefan Zweig, vienense, filho de um rico industrial de têxteis, formado em história em Berlim.


Ambos judeus, ambos perseguidos pela mesma e veneranda intolerância e talvez por causa dela, obcecados com a missão de encontrar um Éden onde, além do leite e do mel, os homens pudessem conviver em paz apesar das diferenças.


Têm praticamente a mesma idade (o austríaco, 59 anos, o português, 63), cultíssimos, informadíssimos, esmerados representantes do Zeitgeist, a cultura do seu tempo. Almas gêmeas, estes visionários chegaram até nós envolvidos por enigmas diferentes. E hoje se encontram aqui pela primeira vez. Espero que não seja a única. Esta reunião, ainda que no plano das hipóteses, clama para ser vivenciada, encenada num teatro ou numa tela de cinema.


Quando Stefan Zweig passou por Recife e Olinda em janeiro de 1941 era um dos autores mais lidos e traduzidos do mundo. No Brasil era um best-seller, adorado pelo público feminino - não por ser açucarado, ao contrário, por servir-se do amor para desvendar os tormentos da alma. Teatrólogo, poeta, biógrafo, ensaísta, no início da 1ª Guerra Mundial juntou-se aos pacifistas europeus que repudiavam todos os beligerantes. Firmada a precária paz, na década intervalar começou a procurar um recanto capaz de resistir aos confrontos raivosos que já se anunciavam no Velho Mundo.


Quando Hitler tomou o poder na Alemanha, Zweig deixou a Áustria, instalou-se em Londres e finalmente pode conhecer o Brasil pelo qual se interessava desde 1928. Apaixonou-se pela humanidade multicolorida do Novo Mundo, verdadeiro paraíso racial em contraste com o inferno racista que deixara para trás. Prometeu voltar, queria escrever um livro sobre o país e converter-se, conforme disse aos jornais, em “camelô do Brasil”.


Zweig passou por aqui num Catalina da Panair a caminho de Belém de onde retornaria aos EUA para acabar a redação do prometido livro. Faltava-lhe um título, o toque mágico que o levaria aos leitores do mundo inteiro tal como acontecera com A luta com o demônio, Carta de uma desconhecida, Confusão de sentimentos e posteriormente com a sua extraordinária autobiografia, O mundo de ontem. O Brasil merecia um livro cujo título seria capaz de converter-se em marca registrada, autêntico sobrenome.


Não se tem notícias de outra obra de Ambrósio Fernandes Brandão. Aliás, a única que leva o seu nome passou mais de 300 anos apócrifa e anônima. Sabe-se pouquíssimo a seu respeito. Uma coisa é certa: era Cristão Novo, isto é, judeu convertido a força e obrigado a professar crença alheia. Foi convocado duas vezes para depor no funesto Tribunal do Santo Ofício, sendo que uma delas como testemunha no processo contra Bento Teixeira, também Cristão Novo, o primeiro poeta residente no Brasil – no Recife - a publicar obra em Portugal. A segunda convocação de Ambrósio à Inquisição foi para defender-se de acusações de judaizante por guardar os dias de sábado.


Apesar dos perigos de parecer judeu, mas protegido pelo anonimato, Ambrósio Brandão não escondia suas origens e inspiração: os seis Diálogos que compõem o seu livro transcorrem ao longo de sete dias, com um intervalo sabático “para estudo”. Além desta inequívoca formatação, fica patente que Ambrósio Brandão, a par dos seus profundos conhecimentos de cosmografia e ciências naturais, conhecia o hebraico e o Velho Testamento que cita com freqüência, ao contrário do Novo Testamento rigorosamente ausente no seu relato.


Deletéria a menção às duas intimações para comparecer à Inquisição sem antes conhecer, a funesta entidade que na Península Ibérica tornou-se mais poderosa do que o próprio poder absolutista de suas monarquias. O Santo Ofício português instalado solenemente com autorização papal em 1536 chegou ao Brasil pouco depois através das Visitações, eufemismo para disfarçar incursões punitivas para caçar hereges. A primeira Visitação dirigiu-se à Bahia (1591-1593) e a Pernambuco (1593-1595), ensaio geral para o estabelecimento de uma sucursal fixa no Brasil, tal como as filias da Inquisição espanhola em Lima, Cartagena e México. O Visitador não tinha poderes para organizar os magníficos Autos da Fé de Lisboa e executar os pecadores, mas poderia remeter os réus ao Tribunal de Lisboa, como aconteceu com o citado Bento Teixeira morto pela tuberculosa nas masmorras da matriz.


Stefan Zweig jamais teve problemas com a sua ascendência judaica, jamais foi perseguido, ao contrário: na sua Viena natal, segundo suas próprias palavras “nove em cada dez intelectuais eram judeus”. Não era observante, mas o primeiro a dar-lhe uma oportunidade como escritor foi outro visionário, o jornalista Theodor Herzl, o pai do sionismo moderno.


Mas Zweig nunca foi um sionista: como pacifista convicto e intransigente, sabia que o nacionalismo – qualquer nacionalismo – é o incubador da beligerância. A obra que abriu a Zweig as portas da fama foi um drama bíblico, Jeremias, escrito no início da 1ª Guerra Mundial, incentivado pelo guru de então, o humanista francês, Nobel de literatura, Romain Rolland. Jeremias é uma ode ao profeta rústico, íntegro, que adverte o seu povo contra os perigos do triunfalismo e os inevitáveis desastres das guerras.


O título Diálogos das Grandezas do Brasil não foi problemático, é a designação natural, objetiva, sem floreios. Mas a identificação do autor resultou de uma façanha biobibliográfica que levou mais de meio século e envolve as maiores figuras da nossa historiografia, começando por Francisco Adolfo Varnhagen e continuando através de Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia e José Antonio Gonsalves de Mello. Herdeiro destes e prefaciador da 3ª edição, a primeira integral, é Leonardo Dantas Silva (a quem rendo as merecidas homenagens).


O nome do autor, Ambrósio Brandão, foi certamente omitido em função de suas passagens pela Inquisição. Omitido mas criptografado no pseudônimo de um dos interlocutores dos diálogos, Brandônio, um português que vivia no Brasil há mais de um quarto de século (a contar desde 1583) profundo conhecedor da sua geografia, meteorologia, ecologia, arqueologia, economia, flora e fauna. Assim municiado Brandão-Brandônio, discorreu não apenas sobre as riquezas do Brasil e os bons ares que o envolvem, mas também sobre as oportunidades que oferece aos que aqui desejam fixar-se.


Alviano é o nome do outro interlocutor, também acrônimo de Nuno Álvares, português recém-chegado, profundamente cético no tocante à colônia, mas aberto à curiosidade.  Brandônio aprendeu com Platão e este com Sócrates que a verdade não é produto de caprichos ou vontades, não aparece de repente, por casualidade, é fruto de uma troca insistente. É um processo obstétrico semelhante a um parto. A vasta cultura de Brandônio precisava ser provocada, as perguntas de Alviano têm a função precípua de acionar o formidável acervo de informações e percepções do interlocutor.


Além de largamente utilizados pelos gregos, Diálogos, Simpósios ou Colóquios serviram aos Romanos (caso de Cícero), depois na Baixa Idade Média (caso de Santo Agostinho). O neoplatonismo na Espanha das Três Religiões produziu obras capitais da cultura judaica no formato de Diálogos. Na Renascença, Erasmo de Roterdã e Leone Ebreo expressaram-se através de Diálogos. Logo em seguida Cervantes, Giordano Bruno e Galileu. A primeira obra em prosa da literatura brasileira é o Diálogo sobre a conversão do gentio de autoria do Padre Manuel da Nóbrega (1559). Ambrósio Brandão, portanto, fazia parte do dernier cri da literatura.


Brandônio e Alviano são anagramas, lembram personagens de novelas de cavalaria e romances pastoris do renascimento português tal como Crisfal (Cristóvão Falcão). O tema que domina as conversas é essencialmente rural, quase não se mencionam os minérios – sobretudo o ouro que tanto seduziu os descobridores e os primeiros colonizadores. As riquezas apontadas  são fruto do trabalho e do conhecimento. Brandônio é, na realidade, nosso proto-educador.


Obscuras são as razões que levaram Ambrósio Brandão a competir com Zweig para ser o camelô do Brasil na Europa. Não se sabe por que razão e com que intenção assumiu-se como propagandista do Brasil.


Stefan Zweig é transparente, não esconde as razões que o levaram a escrever a sua quimera. Em primeiro lugar é preciso considerar que um intelectual do porte de Zweig só escrevia sobre aquilo que o fascinava. O seu encantamento com o Brasil foi genuíno e a promessa de escrever o livro foi pública e voluntária ao encerrar a primeira visita (em 1936).


Sabia que não era o primeiro europeu a fascinar-se com o país, a brasiliana em línguas estrangeiras é vastíssima. Depois do português Pero Vaz de Caminha, a descrição seguinte é a do italiano Amerigo Vespucci, o primeiro a perceber que aquelas terras recém-descobertas por Colombo não estavam no extremo oriente, mas faziam parte de um Novo Mundo.  Zweig tinha a pretensão de trazer um novo olhar sobre o Brasil, mais penetrante, mais filosófico, antropológico.


Seu interesse pelo sul da América do Sul foi despertado nos anos 20 por um filósofo-viajante alemão, o conde Hermann Kayserling (com quem se correspondia) nas suas Südamerikanische Meditationen (Meditações Sul-Americanas, de 1931). Pretendia re-inventar o Brasil com base no que acontecia naquele exato momento no Velho Mundo: o humanismo europeu estava espremido entre os materialismos soviético e norte-americano e consumido internamente pelo ódio político-racial.


A América do Sul afigurava-se para ele como um remanescente da Europa tolerante, iluminista. Nada conhecia sobre as relações raciais no Brasil, mas a miscigenação que flagrou no Rio e na volta no porto do Recife o transformaram numa espécie de militante freiriano avant la lettre... caso tivesse lido a obra de Gilberto Freire (que ressentiu-se, conforme confessou em entrevista datada de 1980).


Havia também um ingrediente humanitário nas motivações para o livro brasileiro porque, a partir do momento em que deixou a Áustria, Zweig aproximou-se de um movimento baseado em Londres empenhado em encontrar um santuário imediato para as massas de refugiados judeus ameaçadas desde 1936 pela pregação nazista. Brasil, Argentina, Angola, Austrália e Canadá tinham vastos espaços inabitados, careciam de mão de obra e na Europa acotovelavam-se desesperados milhões de perseguidos. Diferentemente dos sionistas que pretendiam estabelecer um Lar Nacional na Palestina, este movimento pretendia apenas um santuário territorial (daí o nome, territorialistas) sem qualquer comprometimento político ou institucional.


Uma rápida leitura na introdução e no capítulo sobre a economia brasileira mostra a insistência de Zweig na necessidade de abrir as portas do país aos refugiados europeus confrontando com uma certa dose de coragem o rigor e a desumanidade da política imigratória do Estado Novo.


Mas é preciso admitir que Zweig também foi levado ao livro por um motivo pessoal. Queria proteger-se. Estava com medo. Quando a guerra começou em setembro de 1939, suas anotações no diário eram tranqüilas, quase fleumáticas. Em maio de 1940, no auge da blitzkrieg, diante da iminência da derrota da França, foi tomado pelo pânico, certo de que Hitler atravessaria facilmente o canal da Mancha.


Apavorou-se, chegou a adquirir um frasco de morfina para suicidar-se caso os nazistas e os fascistas ingleses viessem buscá-lo na sua casa em Bath. Isto está consignado com toda a clareza nos diários. Semanas depois, de repente, anota a hipótese de passar algum tempo no Brasil. Quer ficar longe da guerra e, além disso, quer garantir-se com um visto de residência já que o seu passaporte inglês de nada lhe valeria caso os nazistas viessem a ocupar a Inglaterra.


Sem maiores explicações passa um telegrama ao editor brasileiro avisando que vai retornar para completar o livro sobre o nosso país. Na verdade, a idéia foi soprada pelos amigos do Itamaraty que insinuaram a possibilidade de receber um visto de residência permanente.


Os Diálogos de Ambrósio Brandão, foram escritos por volta de 1618, deles sobraram duas transcrições, dois apógrafos, um está na Universidade de Leiden, Holanda, doado pela rainha Cristina da Suécia. O outro está em Lisboa.As diferenças são pequenas. Quem os encomendou,  quem os leu, qual o caminho que percorreram – nada se sabe. Há hipóteses, pistas, indicações que os historiadores saberão desvendar e  converter em evidências.


Por enquanto pressinto que o padre Antonio Vieira tem algo a ver com estes Diálogos. O genial jesuíta era admirado pela rainha Cristina, além disso, tinha grande influência nas diversas esferas do poder em Portugal (então sob o domínio espanhol). O apógrafo de Leiden teria sido o inspirador das invasões holandesas na Bahia e Pernambuco? Ou, ao contrário, teria inspirado o padre Vieira a empenhar-se pouco depois na criação da Companhia Geral do Comércio do Estado do Brasil?


Tudo é possível. Esta Companhia inspirada no modelo holandês foi o primeiro projeto estratégico para o desenvolvimento da colônia. A entonação visionária dos Diálogos pode ter contagiado o utopismo de Vieira que até o fim da vida empenhou-se em defender um poderoso império luso-brasileiro. O projeto de Zweig era visivelmente humanista. Partia de uma avaliação – um pouco forçada - sobre a tolerância da colonização portuguesa e a sociedade cordial que criou. Compara a escravidão no Brasil com a americana e o resultado é evidentemente mais favorável. Historiador, sentia-se mais a vontade manuseando - ainda que superficialmente – o passado.


Mas como o país vivia o seu primeiro grande surto de crescimento não poderia passar ao largo dos fatores econômicos. Por isso apoiou-se ostensivamente na sólida bagagem e na experiência do empresário e fundador dos estudos econômicos, Roberto Simonsen. Graças a ele sugere uma solução capaz de compensar a inexistência de combustíveis fósseis – o uso do álcool produzido a partir da cana de açúcar.


Antes mesmo de terminar o texto e escolher o título, Stefan Zweig já se ocupava com um lançamento simultâneo. Quando chegou a Nova York vindo do Norte-Nordeste brasileiro já tinha acertado a edição em inglês para o Estados Unidos, a alemã a ser impressa em Estocolmo (junto com a sueca), a francesa a ser publicada sob os auspícios da Maison de France de Nova York, a única casa publicadora da França Livre, a espanhola como sempre impressa na Argentina e a portuguesa, a ser editada pela Livraria Civilização, do Porto.


O título do original em alemão ainda não estava decidido quando assinou os contratos de tradução. Estava angustiado e quem o salvou foi o tradutor para o inglês. O irlandês James Stern que também estava em Nova York encontrou escondida no texto a epigrafe em francês que produziu o título e consagrou a obra – Terre d’avenir, País do futuro, Land der Zukunft.


A feliz epígrafe foi escolhida por Zweig e foi recortada de uma carta do então embaixador do Império Austro-Húngaro junto à corte de D. Pedro II, o Conde Prokesch-Osten, tentando persuadir um diplomata francês a aceitar a indicação do seu governo para servir no Rio de Janeiro. A persuasão foi bem sucedida, o francês aceitou a tarefa de representar o seu governo no Brasil e posteriormente tornou-se freqüentador assíduo do palácio e amigo do Imperador.


O problema é que o destinatário chamava-se Joseph-Arthur Gobineau, intelectual de peso, autor de uma obra abjeta convertida na bíblia do racismo moderno: Essai sur l’inegalité des races humaines. Gobineau foi amigo de Richard Wagner, inspirador das vanguardas reacionárias francesas no século XIX e da moderna extrema-direita francesa que naquele preciso momento aliara-se ao nazismo e comandava o governo títere de Vichy.


Zweig até que contesta as idéias de Gobineau em certas passagens do livro, mas não se deu conta que aquele era um nome maldito no mundo democrático. Os franceses foram rápidos: a epigrafe foi imediatamente eliminada da edição francesa e, por tradição, das seguintes. O leitor francês ignora até hoje que o feliz título foi concebido em sua língua para persuadir um convicto racista a conhecer aquela terra cordial e tolerante. Nas edições póstumas brasileiras a epígrafe politicamente incorreta foi igualmente suprimida por solidariedade à França progressista.


Esta foi a menor das infelicidades. Quando o livro foi lançado no Brasil, no início de agosto de 1941 com um inusitado aparato publicitário começou um zunzum dando conta de que Zweig fora comprado pelo famigerado DIP. Como a imprensa estava censurada pelo mesmo DIP o boato não foi contestado. Ao contrário: dele se serviu o diretor do poderoso Correio da Manhã, Pedro Costa Rego, para uma inusitada cruzada na página de opinião do jornal.  Cooptado pelo Estado Novo, Costa Rego não ousava criticar o governo, preferiu  criticar o escritor numa série de cinco artigos sucessivos, preconceituosos, eivados de ironias contra os estrangeiros.


Quando Zweig retornou ao país, seu canto de amor ao Brasil estava transformado em penosa experiência. Não era um polemista, não respondeu aos críticos que se alinharam com Costa Rego. Numa entrevista tentou defender-se afirmando que em 40 anos de vida literária jamais escrevera uma linha que não tivesse saído do fundo da alma. Ninguém leu, a revista Vamos ler, onde se defendeu pateticamente, fazia parte de um grupo de publicações encampadas pelo governo.


Matou-se seis meses depois em Petrópolis junto com a segunda mulher, ex-secretária, uma semana depois do Carnaval. Não ficou magoado com a recepção ao livro que lhe custou tanto escrever. Seu texto final explicando as razões do gesto extremo tem o título em português, Declaração, e das suas 21 linhas um terço delas ocupa-se em agradecer a hospitalidade brasileira. Nenhum de seus biógrafos percebeu que o suicídio ocorreu três dias depois do torpedeamento do primeiro navio brasileiro por submarinos nazistas. O rabino do Rio não o considerou suicida, mas um dos caídos na guerra.


Em agosto de 2011, Brasil, um país do futuro completará 70 anos de publicação. Apesar do tempo transcorrido só recentemente deixou a categoria dos títulos malditos. Já não é a alcunha do “país do nunca”, nem é visto como a miragem que jamais se materializa. Brandão-Brandônio não inventou o nome de um país, contentou-se em ser o precursor da explicação sobre a origem desta linda cidade onde estamos reunidos: Ó-linda!


O Brasil passou a ser uma história de sucesso, Zweig foi o primeiro a antecipá-la e, de certa forma, o primeiro a pagar por ela. Um único crítico teve a acuidade e a generosidade para enfrentar o linchamento do refugiado que ousou apropriar-se do amor a um país alheio e publicou rasgados elogios ao livro. O pernambucano Osório Borba – escritor, tradutor, militante político, um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro – encantou-se de tal maneira com o encantamento de Zweig pelo Brasil que sugeriu que adotasse como pseudônimo a tradução portuguesa do seu nome: Estevão Ramos.


Junto com Brandônio, Estevão Ramos poderia escrever os Diálogos sobre a tolerância que tanta falta faz em nossas estantes, em nossas mentes e, principalmente, em nossa maneira de viver. Clarice Lispector, apesar da legendária discrição, os aplaudiria. O poeta Bento Teixeira sentir-se-ia reabilitado. De minha parte, gostaria de vê-los todos juntos subscrevendo um manifesto em defesa de um Estado laico, secular, pré-condição para uma república verdadeiramente democrática.


 


                    Alberto Dines


                        Olinda, 15 de novembro de 2010