Um telescópio na alma

Alberto Dines
in discurso por ocasião da condecoração

O governo da Áustria me oferece muito mais do que uma comenda. Neste momento, neste ano e nas atuais circunstâncias a honrosa medalha que acabo de receber vale como uma convocação, equivale a uma obrigação.

Estamos na véspera do septuagésimo aniversário do início da 2ª Guerra Mundial, considerado o evento mais importante da história nos últimos 500 anos. Em setembro de 1939 não começou apenas o primeiro conflito bélico de dimensões globais, aconteceu algo mais grave: a humanidade foi obrigada a encarar os demônios do ódio e do ressentimento que ela própria incubou e alimentou ao longo dos séculos.

Esta linda condecoração está colocada perto do meu coração, mas está destinada a permanecer na minha consciência. Foi concedida como reconhecimento, mas para mim vale como um compromisso. As novas gerações têm apenas uma vaga idéia do que significou aquele horroroso episódio que na verdade começou seis anos antes de 1939 e estendeu-se por outros seis, até 1945.

E, como sabemos, quando o passado não é devidamente conhecido, corremos o sério risco de repeti-lo. Quando ouvimos chefes de Estados afirmando em evento da Organização das Nações Unidas que o Holocausto não aconteceu percebemos com toda clareza que a 2ª Guerra Mundial foi sofrida de forma desigual e, por isso, insuficientemente assimilada.

Nossos países, Senhor Embaixador Glanzer, padeceram juntos naquele conflito. A Áustria foi sitiada e humilhada por uma anexação, o Brasil cruzou o oceano pela primeira vez para ajudar a libertação da Europa.

Hoje estamos juntos. Nossos países, nossos povos, não têm o direito de esquecer aquela guerra, sobretudo seus nefastos antecedentes e devastadoras consequências.

E quem nos junta numa empreitada que acredito duradoura e definitiva é uma figura extraordinária não apenas no campo da arte, da cultura, do conhecimento. Quem nos junta foi um humanista autêntico, militante da paz, do entendimento e da tolerância.

Stefan Zweig é o seu nome e esta condecoração cabe a ele. Prometo usá-la orgulhosamente quando for necessário, mas comprometo-me a guardá-la zelosamente até que possa ser abrigada naquela casinha em Petrópolis onde viveu seus últimos meses. Matou-se quatro dias depois do afundamento do primeiro navio brasileiro por um submarino nazista. Tinha horror à guerra, fugia dela há oito anos, a guerra foi atrás dele e alcançou-o no bairro de Valparaíso, Vale do Paraíso.

Vi-o apenas uma vez quando visitou a minha escola aqui no Rio, mas examinei centenas de fotografias. Vi-o de chapéu gelot, de calças curtas tirolesas, de fraque, fumando charutos, tomando cafezinho, rodeado de admiradoras, até diante de uma enorme câmera de TV. Raríssimas são as fotos em que aparece de óculos, o pince-nez que usou depois que obteve o seu doutorado certamente não tinha grau, deixou de usá-lo logo depois.

Não precisava de óculos porque estou convencido de que possuía na alma um binóculo, talvez um telescópio. Através deste telescópio enxergou o Brasil perto da Áustria, a Europa dentro da América Latina, o mundo unido pelas forças espirituais, o presente próximo ao futuro. Com este telescópio Stefan Zweig poderia ter nos enxergado aqui, hoje, reunidos para lembrar a lembrança, memorizar a memória e honrar o compromisso de não esquecer.