Exílios Renato Lessa Discurso proferido por ocasião da abertura da exposição "...Olhando mais para frente do que para trás: o exílio de língua alemã no Brasil, 1933-1945", em 11/12/2014 Esta exposição trata da presença de um grande contingente de exilados, de língua alemã, que vieram ter ao Brasil, entre 1933 e 1945. Trata-se do maior contingente de exilados recebido pelo país, em toda a sua história. Vista com a passagem do tempo, trata-se de uma história de superação, de vitória sobre as condições originárias causadoras do exílio. No entanto, não se pode obliterar a dureza e o absurdo vividos pelos exilados originários, as primeiras levas dessa condição. A exposição trata do impacto do exílio na vida brasileira, que foi extremamente positivo e estruturante. Um privilégio nacional ter recebido esse contingente, mas na origem de tudo esteve um dos maiores sofrimentos que podem ser impostos aos humanos. Há comunidades de exilados que, por sua permanência nos países e locais de acolhimento, não apenas livraram-se das condições de letalidade física e/ou cultural da origem, mas acabaram por marcar a paisagem dos territórios de chegada. É o caso do incomensurável impacto cultural e civilizatório da corrente de exilados de língua alemã que acorre ao Brasil, entre meados dos anos 1930 e dos anos 1940. Da perspectiva do que já passou – três ou quatro gerações após os atos de desfixação originais – sempre é possível usufruir de certo alento. Afinal, por modos muito diversos, agarramo-nos à vida e nela permanecemos: os imperativos de descendência são postos como passagem para a superação das agonias e incertezas vividas pela ascendência. É bem este o segredo das comunidades exiladas que se re-fixam no mundo: a superação, pela descendência, das distopias da ascendência. Nem todas comunidades exiladas foram redimidas por algum sucesso na permanência na vida. Por vezes, permanecer na vida é tão somente uma pátina que encobre supressões e perdas para as quais não parece haver remissão. A experiência das primeiras gerações de exilados, por exemplo, assim o indica. São elas as portadoras privilegiadas da experiência original do desvínculo e da deambulação compulsória por mundos em ruínas ou, simplesmente, ilegíveis. É de se imaginar, quando se percebe o encantamento de Stefan Zweig com sua própria língua, ao elogiar a maestria poética e ensaística do jovem Hofmannsthal, o quanto de seu sofrimento no exílio decorreu da supressão de seu ambiente linguístico original. Perder uma língua talvez seja o mais doloroso na imensa dor do exílio. Poucos terão tido o heroísmo e a resiliência de um sujeito como Kurt Schwitters, o genial dadaísta alemão, que se exila na Inglaterra, em 1933, e decide abandonar a sua língua, condenando-se ao uso vitalício de uma duvidosa proficiência no idioma inglês. Schwitters, no entanto, possuía o recurso da linguagem das artes plásticas, e por aí foi. Em ato igualmente heroico, o intelectual alemão e judeu Victor Klemperer – primo do grande maestro Otto Klemperer -, professor de literatura românica na Universidade de Dresden, acaba por permanecer na Alemanha durante o nazismo, período no qual se dedica a estudar a língua dos seus inimigos. Disto resultou o genial livro “A Linguagem do Terceiro Reich”. Exilado interno, Klemperer apega-se a sua língua para exibir a sua desconfiguração, por meio dos reiterados atos de fala dos celerados que destruíram o seu país. Isso parece fazer também sentido: permanecer, idêntico a si mesmo, em um mundo que desaparece é algo que também sabe a exílio. A condição do exílio é um dos mais dolorosos experimentos humanos. Stefan Zweig, em sua tão bela quanto triste autobiografia, concluída em 1942, às vésperas do suicídio em Petrópolis, associou a condição a um sentimento de “não sei para onde ir”. Exílios são também experiências interpessoais que carregam consigo, de modo concentrado e pessoal, as características mais gerais da condição. Ainda que sejam animais sociais inscritos em coletividades, a experiência de interação mais intensa dos humanos se dá na relação com o outro imediato – na amizade, no amor, no compartilhamento, na comunhão e no abismo da intimidade. A ruína abrupta desses mundos interpessoais faz com que desapareçam os objetos e as vivências do que até então se apresentava como mais próximo e essencial. Permanecem exilados os termos das linguagens próprias a tais mundos compartilhados, agarrados a uma memória, da qual foram suprimidas as potências de fabricação do presente e do futuro. Assim como os seus falantes - na condição do desvínculo, da descomunhão e do descompartilhamento -, as palavras dessas línguas são artefatos dissolvidos em um mundo sem gravitação. São, pois, palavras exiladas. Aqui reside o âmago da condição do exílio: perda da linguagem, apagamento da forma de vida que lhe corresponde. Desvínculo: é essa a palavra chave que denota a dissolução da experiência de “estar-junto” e a passagem para a experiência de “não sei para onde ir”, posta por Stefan Zweig. |